5.4.10

Aleluia!


As campainhas anunciam a chegada. Estão cada vez mais próximo. José dirige-se, com o apoio da bengala, para a porta, aberta de par em par desde a hora de almoço, à espera da visita, a única que tem durante todo o ano, desde a morte da mulher, há dois anos. Sabia que só viriam por volta das três horas, mas pouco depois do meio-dia já tinha a porta aberta. Pôs a toalha branca de linho na mesa, a mesma que usaram durante 60 anos para as visitas importantes, como a daquele dia, abriu o pacote de amêndoas que o padeiro lhe tinha oferecido e colocou-o no prato cavalinho, tão antigo como o chão da casa que o abrigava. No pratinho mais pequeno de vidro pôs o folar, uma nota de dez euros, pouco, mas o que podia dar. Estava tudo pronto. Não, faltava uma coisa muito importante! A mulher nunca lhe perdoaria aquele esquecimento. Foi ao pequeno quintal e apanhou um molho de flores brancas, daquelas a que chamavam flores da Páscoa, porque floresciam sempre nesta data. Partiu os ramos aos bocadinhos e espalhou-os em frente à entrada da casa. Agora sim, estava tudo pronto para a visita.
Foi-se sentar à entrada da casa no banco de madeira. Apoiado na bengala, deixou-se ficar a ver passar o tempo. O velho relógio de parede ia marcando o compasso de espera, tão cansado quanto ele. Àquela hora o silêncio era geral, estariam todos, certamente, a almoçar com a família, um bom cabrito, como era tradição, e como ele tantas vezes também fizera. Teve saudades desse tempo, desse sabor, do cheiro que fugia do forno a lenha e invadia a cozinha. Engoliu em seco. Para quê recordar? Coisas tristes, não voltam mais esses tempos, vamos lá ver se a fogueira ainda está acesa. Passou para o borralho, sempre se entretinha com a tenaz a mexer as brasas e ia ouvindo a televisão, mesmo sem ouvir. Era um barulho qualquer que estava ali, só isso, para atenuar o silêncio que escorria das paredes húmidas e frias.
Mas agora estavam perto, já se ouviam as campainhas ali mesmo ao lado. José dirigiu-se à porta, ajeitando o casaco cinzento que só vestia neste dia, para receber Nosso Senhor. Já aí vêm. Compôs novamente o casaco, endireitou-se, tirou a boina. As campainhas agora estão dentro da sua casa, dentro do seu silêncio, dentro do seu coração. Secou uma lágrima. Teimosas. Com a idade deixou de as conseguir controlar, tornaram-se tão fortes como um rio que por mais diques que construam corre sempre em direcção ao mar, poderoso, resoluto, levando tudo à sua frente. Paz a esta casa, aleluia, aleluia! E a todos os que nela habitam, aleluia, aleluia! Mais uma, teimosas, a mão disfarçadamente no rosto, a fazer de conta que se coçava, talvez ninguém tenha visto. Cristo ressuscitou, aleluia, aleluia! Alegremo-nos todos no Senhor, aleluia, aleluia! Um beijo em Nosso Senhor, um aperto de mão aos rapazes e beijos às raparigas. O olhar curioso a percorrer os rostos desconhecidos. Mas que lindos meninos! Quem é esta? Filha de quem? Já não conheço ninguém, vocês agora crescem tanto e eu nunca saio de casa, já não conheço ninguém. Tirem uma amêndoa. Não, obrigada, senhor José, não temos fome. Olhem que isso é folar, que todos os anos gosto de dar, enquanto eu for vivo, nem que seja na cama, hei-de dar o folar. Obrigada, senhor José. Não querem sentar-se um bocadinho, descansem ao menos que a volta ainda é longa. Não, obrigada, temos que ir que isto é sempre a correr, já sabe, daqui a pouco é noite. E as campainhas saem a correr pela porta, aberta de par em par, para receber Nosso Senhor. Tirem ao menos uma amêndoa! Mas elas já lá vão, a tilintar pela rua, em direcção a outras portas. O sol penetra-lhe nos olhos, quase o cega. As flores pisadas, a porta aberta, as amêndoas no prato, a casa vazia, como nunca deixou de estar. Não ficou ninguém. José baixou os braços, deixou cair a cabeça, vencido. Um homem não chora. Um homem não foi feito para estar sozinho. E as lágrimas rasgaram-lhe as rugas e caíram pesadamente no chão.

5 comentários:

Anónimo disse...

Ainda me resta fé. Pouca, confesso. Mas percebo que ela ainda existe quando me comovo na eucaristia, quando não consigo travar as lágrimas quando a cruz do compasso entra pela porta escancarda no dia de Páscoa. Ontem não tive lágrimas, senti que não tive Páscoa. Receei essa falta. Hoje li o teu texto e elas brotaram. São lágrimas de fé, acredito agora. E por isso te agradeço. Cristo manifesta-se onde menos esperamos.

Sandra Biel Cepa disse...

As lágrimas são o espelho mais sensível da nossa emoção! Que lindo texto amiga! Que bonita reflexão ... Muitos beijinhoss

Mafalda Branco disse...

Não sei quem escreveu o comentário anónimo, mas compreendo perfeitamente. A minha Páscoa esteve nas lembranças de um tempo que não volta mais, mas deixa saudades e marcas indeléveis. A visita a pessoas como a que escrevi é uma delas. A sensação de entrar numa casa vazia, a precisar de palavras e afecto, e a pressa de ir porque é preciso a contrastar com a vontade de ficar porque é urgente... Cristo manifesta-se onde e quando menos esperamos, na maior parte das vezes nos gestos mais simples, a que é preciso estar muito atento e ter o coração aberto para entender.
Obrigada!...

guidasis disse...

Mafalda, o comentário é meu e nem percebi bem porque apareceu anónimo. Não foi uma opção consciente. Até porque é um agradecimento. Um abraço.

Mafalda Branco disse...

Guida,
é curioso, porque quando li, mesmo sem ter a certeza, foi em ti que pensei!... A tua forma de te expressares é inconfundível, muito tua! :) Beijo enorme!!