
Desde sempre me lembro das celebrações em honra do Senhor dos Passos, vividas em Condeixa. Era sempre um dia diferente, passado em casa dos meus tios. Era um dia em que a minha tia fazia um cabrito assado como ninguém, em que a garagem se enchia com a família e amigos e havia sempre lugar para mais um. Aos poucos, a família foi crescendo. Primeiro era só eu, depois começaram a vir os primos, a alegria e o rebuliço aumentaram. Quando a procissão passava na rua, todos acorríamos à varanda para ver passar o Senhor dos Passos e Sua Mãe. Eu ficava fascinada com as cores, as flores que os enfeitavam e a realidade dos seus rostos, às vezes quase jurava ter visto Nossa Senhora chorar de tristeza pelo destino do seu Filho. Na garagem, o meu tio cumpria a tradição. Os homens que carregavam os andores revezavam-se e entravam para "molhar a boca" com um vinho caseiro. Afinal, carregar um andor é tarefa dura! Depois da procissão, eu e os primos íamos até à Praça Municipal comer uma fartura ou pipocas, havia um cheirinho tão bom no ar! Voltávamos para casa dos meus tios e retomávamos o farto banquete, com sorrisos e anedotas pelo meio. No final despedíamo-nos, com muitos beijos e fortes abraços, dizendo "Até para o ano, se Deus quiser". Até que um ano Deus não quis... ou não foi Deus? Quem terá sido então? A minha prima partiu para sempre e para sempre partiram também as festas do Senhor dos Passos. A casa ficou desabitada, fechada, vazia. No dia da procissão, a minha tia passou a estar sozinha na varanda, um vulto preto, sumido entre as lágrimas e o sofrimento violento de perder uma filha. E foi assim durante muitos anos. Mas, um dia, a casa voltou a ser habitada, a ter gente, sonhos, vida. Não se voltou ainda a comer o cabrito, mas um dia, quem sabe o ciclo não se renovará? Hoje esteve novamente gente na varanda, muita gente, em silêncio, unida pela emoção das lembranças mas também pela esperança na felicidade futura. Hoje, os homens que carregavam os andores voltaram a "molhar a boca" e eu percebi que há tradições que nunca se devem perder, embora às vezes possam não se compreender. Hoje, o Padre Saúl, já reformado, voltou a olhar para cima e a dizer adeus, a sorrir, como que a dizer "que bom ver-vos aí novamente". Hoje voltou-se a celebrar o Senhor dos Passos na minha casa.
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