1.7.10

A alegria que se contagia


No dia 5 de Junho fomos recebidos pelo povo da aldeia onde a AMI tem vindo a intervir e onde fica situado o Centro de Costura que ajudámos a financiar. Segundo a Ilda, o nosso grupo conseguiu financiar por completo o Centro, o que é uma sensação muito boa, de orgulho pelo esforço dispendido.
Não conseguirei encontrar palavras, por mais mágicas que elas sejam, para descrever a emoção que vivi à chegada a Kaba. Fomos recebidos pelo povo da aldeia com uma alegria, um êxtase, uma efusividade que nunca antes experimentei. Foi inevitável conter as lágrimas. Não temos noção de como pequenos gestos, que a nós não custam assim tanto como isso, podem mudar, efectivamente, a vida das pessoas, e de como elas ficam gratas por isso.



Mãos que nos tocam, olhares que se cruzam e permanecem, fascinados, encantados com a sensualidade deste povo. São olhares mágicos, sonhadores, felizes. Pergunto-me como. Pergunto-me do que preciso para ser feliz, como eles. Percebo que posso andar despida e descalça, suja, despenteada, e ainda assim ser feliz. É estranho pensar e sentir assim, mas é verdade.
Fiquei deslumbrada com a dança. Com a energia, a beleza, a cor, a alegria, a sensualidade com que este povo dança. As mulheres são belíssimas, de uma beleza rara, exótica. Têm um olhar magnético, que me prende. E têm-no desde meninas, desde bebés. É impossível ficar indiferente. É impossível não ser contagiada.


26.6.10

Casa

Ao reler o caderno com mais atenção, descubro com surpresa que todos os dias têm algumas palavras em comum:

Sinto-me em casa. Estranhamente, sinto-me em casa. Cada vez mais me sinto em casa.

Onde é, afinal, a nossa casa?... Hoje fico a pensar nisto e a recordar imagens que não mais me sairão da memória.

Mercado de Touba-Toul



Do meu caderninho de viagem, vou retendo algumas palavras. Eis um bocadinho do que escrevi no dia da visita ao mercado de Touba-Toul, um dos maiores do Senegal, no nosso primeiro dia no país...


Nunca imaginei o que encontrei. Nem sei caracterizar. É um misto de pobreza e miséria e de capacidade de sobrevivência e resistência. Ao olhar em volta, a vida corre como em qualquer parte do mundo. Há mulheres, crianças, homens, velhos. Há os que trabalham e os que mendigam. Há deficientes. Há sorrisos à nossa passagem. Há quem levante pedras ou vire a cara contra as fotografias. Por todo o lado há animais, sobretudo burros e cavalos. As carroças passam, às vezes com velocidade, outras em engarrafamento.

Tudo se vende: telemóveis, mangas, a fruta do baobá, cereais, cadeados, animais, corda, refrigerantes... À minha frente, de repente, uma imagem tipicamente africana: uma mulher mói cereais com uma criança às costas. Fico extasiada. De repente, toca um telemóvel. Ela pára o seu trabalho e atende. Eu sorrio, surpreendida e ao mesmo tempo divertida com uma imagem tão ilustrativa da globalização. Ela sorri-me também, não sei se percebeu o meu sorriso ou não. A vida continua.

As crianças são deliciosas. O sorriso, primeiro tímido, depois aberto, contagia, faz perder o medo inicial de quem, como eu, vem de um mundo tão diferente.
Adoro as crianças. E as mulheres. E os homens. Os rostos. O olhar. Apetece ficar horas a ler os olhares. A fotografar, a tentar levar para sempre quem se cruza connosco num segundo, mas consegue, com esse olhar, dar sentido à nossa existência.


Habituo-me ao calor, aos cheiros, aos animais, ao pó, às pessoas, à pele negra. A pele negra mais bonita que já vi. Cruzei-me com uma mulher que parecia pintada a óleo negro: a pele indescritivelmente lisa, suave, una. Foco-me nas cores dos vestidos coloridos, que contrastam com a aridez da paisagem. É incrível este contraste! Uma profusão de cor e brilho no pó do deserto.

23.6.10

É preciso tão pouco para se ser feliz!


Estamos tão habituados ao nosso conforto que nos é difícil imaginar noutro cenário, com outro tipo de condições, sem aquilo a que egoisticamente chamamos de imprescindível. Nos dez dias em que estivemos no Senegal, praticamente não houve água. Nas torneiras era rara a hora em que corria e no chuveiro... nem cheirá-la. O nosso melhor amigo foi mesmo o púcaro, que nos proporcionou alguns dos melhores e mais refrescantes momentos no acampamento. A primeira vez posso dizer que foi estranho, mas quando voltei a abrir um chuveiro até me fez impressão o jacto de água! E a verdade é que, mesmo com muito menos do que estava acostumada a ter, ainda assim, me senti uma privilegiada, e fui-o, de facto, sobretudo perante as condições em que vivem as pessoas da comunidade em que estivemos inseridos. Apesar de tudo, não deixa de ser incrível como nos adaptamos, mesmo contra tudo aquilo que imaginamos. E a adaptação foi tão boa que disse e escrevi mesmo, várias vezes, que não sentia falta de nada e me sentia em casa. Sem a água e as condições a que aqui estou habituada (privilégio, luxo!), fui mais feliz do que nunca. Suja no corpo, sim, mas limpa. Por dentro. Na alma. Essa foi uma das maiores lições que retive da minha primeira aventura em África: é preciso tão pouco para se ser feliz!...

O sorriso mais terno...

Num dos momentos de descanso e de registo de emoções no diário, numa das revistas espalhadas pelo chão que alguém ainda tinha trazido de Lisboa, um anúncio chamou-me a atenção. "Um dia vou descobrir que um belo sorriso faz acontecer muitas coisas". Eu, que acho que nada acontece por acaso, sorri. E recordei os sorrisos mais bonitos do mundo, ali mesmo ao pé de mim, em momentos eternos, gravados na memória, no coração, e nas fotografias, imagens de ternura. Acho mesmo que Deus coloca anjos no meu caminho. E esses anjos podem ter qualquer idade. À saída de uma visita comovente a uma casa de uma família da comunidade onde estivemos a trabalhar, este anjo aparece no meu olhar. Muito sossegado, ao pé de umas cabrinhas brancas, no meio do lixo, ao ver-me sorri. Num sorriso que iluminou o mundo e fez esquecer todas as tristezas, dores ou mágoas que o coração ainda pudesse preservar. A cada sorriso, um novo e cada vez mais belo sorriso nascia. A todos os que lhe sorriram, ele sorriu também, numa doçura maior do que sei dizer, e que só apenas quem presenciou aquele momento é capaz de entender. E foi assim que respondeu às palavras da Ilda, que certamente não entendeu, com esse sorriso terno que nos deixou sem palavras e com os olhos rasos de lágrimas. Como se o sorriso fosse a resposta para todas as perguntas. É verdade, sim, e eu descobri naquele dia, na maior simplicidade, que "um belo sorriso faz acontecer muitas coisas".

20.6.10

Carta ao meu menino...

Não consigo deixar de pensar em ti. Em como estarás. Meu menino. A primeira vez que te vi no meio de tanta gente percebi que eras especial. O teu olhar dizia tudo, ao contrário das tuas palavras, sempre tão parcas. Enquanto os outros meninos eram alegres, activos, desinibidos, tu eras calmo, tímido, recatado, às vezes até triste. Chegavas-te a mim e deixavas-te ficar, à espera que te encontrasse no meio de todos os outros. Eu encontrava-te sempre. Procurava-te como quem procura água para matar a sede. Precisava de ver o teu olhar e mostrar-te que te via, sim. Eu via-te. Tu sabes que sim. E tu vias-me a mim. Os nossos olhares não precisavam de palavras, porque se entendiam. Eu sabia que tu gostavas de mim, tu sabias que eu gostava de ti. Arrancar-te um sorriso era sempre difícil. Mas quando mo oferecias, era como um raiozinho de sol que iluminava o meu dia. E que sorriso lindo tu tinhas!...
Sabes, meu menino, não consigo deixar de pensar em ti. Como será o teu futuro? Será que vais conseguir cumprir os teus sonhos? Continuarás a aprender a ler e a escrever, como me mostraste, orgulhoso, no teu cadernito que trazias da escola ao fim da manhã? Serás um dia um homem realizado?... Adormeço e acordo contigo no meu pensamento. Espero voltar em breve para te rever e saber o que já aprendeste mais. Espero encontrar o teu olhar no meio de tantos meninos e sentir-te sorrir para mim. Espero que sejas, simplesmente, feliz, meu Mamadou-Faye!...

19.6.10

Mãos que semeiam sonhos


Numa das noites de partilha à volta da mesa, dediquei este poema aos meus companheiros de missão. Para que se lembrem sempre que, por muito que seja preciso esperar, todas as sementes lançadas à terra com amor dão fruto.
É preciso nunca deixar de sonhar e de acreditar!

Guarda a tua seiva para as raízes e os dedos para a colheita.
E depois detém-te a olhar o fruto, crescendo devagar,
nas tardes que demoram até ao verão. Que te seja redondo,
ao côncavo da mão, e nele reconheças o gosto e o perfume

mesmo antes de tocar-lhe; morde-o longamente com os olhos –
é neles que a polpa faz mais sede e a pele transpira
com o fulgor da cera. E não consintas vento, nem abelhas,
nem que nele repousem outros olhos, muito mais pequenos,
como os que trazem as aves voltando do Inverno. Deixa

o teu nome no pomar durante a noite – há mãos que nunca
dormem e a espera pode tornar os frutos ociosos.
Mas para mais ninguém este se avoluma, à tua boca prometido.
Embala-o então com a verdade antes de partires.
Cerca-o com os teus olhos. Mostra-lhe os dedos
que irás um dia confiar-lhe.

E assim o tempo devolvê-lo-á inteiro a seu tempo, vermelho
e tenro, doce, à espessura dos lábios.

Maria do Rosário Pedreira, in "A Casa e o Cheiro dos Livros"

À sombra de um embondeiro...


"Na viagem para África, porém, esse sonho rodopiou. Talvez tivesse esperado demaisado tempo. Nessa espera, aprendi a gostar de ter saudade. Recordo os versos do poeta que diziam «eu vim ao mundo para ter saudade». Como se apenas pela ausência eu me povoasse interiormente. Seguindo o exemplo dessas casas que só se sentem quando estão vazias. Como esta casa que agora habito."

Mia Couto, in "Jesusalém"

18.6.10

Com os pés em África


Ainda me sinto nas nuvens. Ou melhor, com os pés na terra, mas na de África. Hoje disseram-me que África é como o colo de uma mãe. Talvez seja isso, sim. Se for, eu quero voltar a ser criança para nunca mais sair desse colo. Sinto agora que sempre ali estive, que sempre estarei. Encontrei um sentido para o apelo que senti desde sempre e que muitas vezes não compreendia. Os cheiros, as cores, os olhares, as mãos, a pele, a música, a dança, o ritmo, o calor… tudo me enche a alma e me prende lá, ainda. E o céu estrelado como nunca vi na última noite que lá passei… Ou o pôr-do-sol sobre as dunas partilhado com a Maria da Luz e a Matilde… Tudo me prende, tudo me liberta. Em África senti-me livre, como nunca antes me tinha sentido.


Sou forçada a regressar aos poucos a um mundo que quase não reconheço. Não consigo dormir, sonho que ainda lá estou. Vejo-me rodeada de todos aqueles meninos e sorrio. Não consigo parar de sorrir. Estou lá, ainda e sempre. Agora sei.

15.6.10

Ao regressar...

...trago esperança no olhar e muitos mais sonhos para concretizar!
Ainda com todos os pensamentos em África...