24.5.09

O meu avô Branco

O meu avô, do qual herdei o nome Branco, tem 89 anos e todos os dias, excepto o Domingo, dia sagrado, se levanta cedo para ir para o quintal. Pega na enxada e lá vai ele, em passo lento, para a sua paixão. No dia em que o meu avô não puder cultivar a terra, morre. Todos sabemos isso. E, por isso, admiro imenso o meu pai e o meu padrinho, que sempre respeitaram a sua vontade e aquela que sempre foi a sua vida. Lembro-me sempre dos idosos com quem já trabalhei, cuja grande tristeza era terem-lhes tirado a liberdade de fazer aquilo que mais gostavam, e fico feliz por saber que com o meu avô isso não se passa, apesar da idade avançada e de alguns problemas de saúde.
Às vezes cai na terra e aparece em casa a sangrar na cara ou nas mãos, ou noutra parte qualquer daquele corpo velho, mas forte, marcado pelo trabalho. A minha avó fica aflita e, assim que a notícia se espalha, vamos todos a correr para ver o que se passou e, se necessário, levá-lo ao hospital. Quando chegamos, a minha avó ri-se muito e diz: "já lhe curei a ferida". O tratamento da minha avó é invariavelmente o mesmo: lava a ferida e a seguir põe-lhe álcool e iosina, às vezes também uma pomada que diz ser milagrosa. A seguir faz-lhe um chá, e está pronto para outra. Rimo-nos todos com a enfermaria caseira, mas a verdade é que, por muito fundas que sejam, aquelas feridas saram sempre. Será o amor com que lhe faz o curativo? Ou o amor com que a pele dele o recebe?
A propósito de amor. Há um tempo atrás, a minha avó adoeceu e teve que ser hospitalizada. Há uma regra sagrada que todos conhecemos: o meu avô não quer sair da sua casa, nunca. Por isso lá ficou, embora sempre acompanhado e visitado. Nos primeiros dias conseguimos transmitir-lhe alguma esperança e tudo correu bem. Mas, pouco tempo depois, o meu avô enfiou-se na cama e aos poucos deixou de comer. Por muito que lhe disséssemos que a mulher estava melhor (e estava), nada o fazia mudar. Todos receámos o pior. No entanto, assim que a minha avó voltou para casa, levantou-se e foi-lhe fazer chá. A partir desse dia, voltou a comer e ao seu dia-a-dia de sempre, com a mesma energia que lhe conhecíamos. Sei que se a minha avó estiver bem, ele também está. Por isso rezo e peço a Deus que não o deixe sozinho, porque sei que morreria rapidamente também, por amor.
O ano passado olhei pela janela e o meu coração apertou-se tanto que não consegui evitar gritar de medo. Estava sozinha em casa. Um pouco mais abaixo, o meu avô, com 88 anos, estava em pé em cima de uma macieira, a podá-la. Literalmente. Pensei chamar alguém, gritar-lhe para descer dali, mas tive medo que se assustasse e caísse. Por isso deixei-me estar, perto de uma hora, a vigiá-lo, à distância e em silêncio. Não caiu, felizmente, embora eu não tivesse descansado enquanto não o vi assentar os pés em terra firme. Fiquei a observá-lo aquele tempo todo. Parecia ter ganho uma nova vida em cima da árvore. Às vezes endireitava-se muito, a observar em seu redor, com aquela vista privilegiada. Tinha uma postura mais firme e segura do que quando o vemos na terra, como se estar em cima de uma árvore lhe desse uma sensação de poder ou domínio sobre si próprio e sobre as suas fragilidades físicas. Fiquei fascinada e orgulhosa. Senti que, mesmo que ele caísse, estaria feliz e isso tranquilizou-me. Porque aquilo que acho que todas as famílias deviam procurar e tentar manter a todo o custo é a felicidade dos que amam, quer dos mais novos, quer dos mais velhos, independentemente da sua idade. Porque é uma dádiva poder viver estes momentos e aprender tanto com eles!

4 comentários:

Maggie disse...

De vez em quando passo por aqui e desta vez não resisti a comentar este seu texto. Uma das minhas bisavós tb viveu sozinha na sua terra e na sua casa até aos 91 anos (altura em que caiu e fracturou o colo do fémur; recusou-se a ser operada e, contra todas as previsões, voltou a andar). Com 90 anos, uma sobrinha dela foi dar com ela em cima do limoeiro e teve o mesmo susto que a Mafalda, mas, tal como o seu avô, desceu tranquilamente para continuar a sua lida. Partiu aos 95 anos vencida por um cancro, mas sempre com uma força imensa como só as pessoas dessa massa são capazes.

Muita saúde para os seus avós, que são dessa mesma massa.

E parabéns pelos seus textos.

Mafalda Branco disse...

Olá Maggie!
Obrigada por ter partilhado aqui também essa história e essa pessoa tão especial que devia ser a sua bisavó. Sem dúvida que são exemplos como estes que nos dão mais força para enfrentar as pequenas adversidades da vida!
Beijinho e obrigada pela visita!
Mafalda Branco

Anónimo disse...

A minha estrela mais velha, ao ler o texto reconheceu nele o avô, meu pai... Obrigada por uma leitura tão simples e bonita, que encanta duas gerações tão diferentes e tão iguais.
Um abraço da nossa constelação.

Kate disse...

Linda, não pude deixar de comentar.No fim até uma lágrima se soltou..tb me revejo em tanta coisa..adorei as tuas palavras (como sempre).

beijo com saudades