24.5.09

Velhice

A fotografia está sempre no mesmo sítio, todos os dias a vejo. Emoldurada no quadro que me ofereceram quando vim embora, rodeada de um poema e das assinaturas de todas, umas com a letra tremida, outras com a impressão digital que, tal como a nossa assinatura, é única. Mas hoje olhei para ela novamente, como já não fazia há algum tempo. Olho-as como se apenas as tivesse deixado ontem. Têm o mesmo sorriso, o mesmo olhar, a mesma pela enrugada, os mesmos cabelos brancos. Sempre gostei de fotografias precisamente porque imortalizam um momento que não se volta a repetir. E também porque sobrevivem para lá da efemeridade da nossa memória e da nossa existência. Mesmo muitos anos depois da morte, podemos continuar a contar a história daquele momento, daquelas pessoas. Interrogo-me agora onde estarão, como, se estão ainda...
Da que tenho mais saudades é a D. Maria. Não consigo precisar o momento em que nos conhecemos, porque parecia que nos conhecíamos desde sempre. Entre nós nem sempre havia grandes conversas, sobretudo se, por algum motivo, se tocava no assunto mais frágil: família, filhos, netos. Nunca recebia visitas. Passava Natais e todas as épocas festivas no lar, sozinha, com mais dois ou três idosos e os funcionários de serviço. Na maior parte das vezes em que falava dessa dor, dizia-me que gostava que eu fosse sua neta. Quem me conhece sabe o impacto que tem em mim um desejo destes. Amo e respeito os meus avós acima de tudo. E, por isso, nunca consegui compreender como é que era possível aqueles netos excluírem a avó da sua vida. Há atitudes que realmente me fazem confusão e são, simplesmente, desumanas. Quase sempre as nossas conversas eram feitas apenas de olhares, umas vezes sorridentes, outras, tantas, inundados de lágrimas cúmplices. Gostava de a ouvir falar. Raramente o fazia, sobretudo em grupo, mas quando falava as suas palavras eram sábias e causavam espanto, porque nunca pensaram que aquela mulher, tão simples e calada, sem saber ler e escrever, fosse um poço de sabedoria e sensatez. Gostava de lhe dar a mão e sentir a força com que me apertava sempre, sem nunca desviar o seu olhar do meu. Dizia-me que devia ir todos os dias e que a terça-feira era o dia mais feliz para ela. Aquelas palavras e a sinceridade com que eram ditas ecoam na minha cabeça e enchem-me de saudade. Sei que me vê e acompanha agora noutro lugar, todos os dias, como gostava. Até sempre, D. Maria!
Recordo também a D. Laura. Conheci pouco da sua história de vida, porque nunca falava e era muito discreta. Muito pequenina, frágil, afundada na sua cadeira de rodas, estava sempre muito atenta, e sempre que lhe falava agradecia imenso, muitas vezes com lágrimas, mas sempre, sempre com o sorriso mais doce do mundo. Repetia vezes sem conta, com aquela verdadeira ternura que só a ela conheci, "obrigada, muito obrigada!". Na altura não percebia porque me agradecia tanto, agora talvez consiga perceber um pouco mais. Embora ela não procurasse a minha mão, eu fazia de propósito para lha dar. E ela segurava-a sempre, num misto de surpresa e felicidade pelo gesto tão simples, mas, vim a perceber com a experiência, muito raro nestes locais. E dava-lhe a mão não só para lhe transmitir o meu carinho, mas também para sentir a sua pele, que era de uma suavidade que me parecia impossível ser verdade. A D. Laura era a ternura em pessoa, disso tenho a certeza.
A D. Isaurinda era o oposto. Uma mulher aparentemente rude, sisuda, com feições típicas de quem teve uma vida dura, no campo, no início senti até algum medo e apreensão em falar com ela, confesso. Mas era uma delícia! Raramente falava e nunca intervinha quando as outras colegas falavam da família, em muitos dos casos (não todos, felizmente!) situações bastante tristes e revoltantes. Tentava sempre desvalorizar e dizia que não valia a pena falar disso, "o que lá vai, lá vai, o que é que a gente há-de agora fazer?". O que gostava mesmo era de contar anedotas ou pequenas histórias, sempre picantes e bastante divertidas, é verdade. Nem todas as colegas gostavam ou se sentiam à vontade, mas o que é certo é que acabávamos sempre a rir com a linguagem que utilizava e com a gargalhada com que terminava cada uma. Era a animação da sessão, sem dúvida, e marcou-me também por isso. Porque me faz sempre lembrar que, apesar das dificuldades da vida, há sempre quem mantenha o espírito positivo e a capacidade de se rir ou, pelo menos, o tente demonstrar, mesmo que por dentro chore.
É por isso que gosto das fotografias e faço questão de as ter sempre à minha volta. Porque de uma imagem surgem muitas outras, que me fazem recordar momentos e pessoas inesquecíveis.

1 comentário:

Deworah disse...

Também nas minhas escassas leituras, li algo que identifico com o texto e que julgo poder torna-lo ainda mais profundo: "Devemos cuidar do nosso futuro e devemos cuidar de quem cuidou do nosso futuro. Ser velho já não é mais problema, ser velho é viver de passado, o que se torna velho é o nosso corpo porém a nossa alma e coração se os cuidarmos com a devida responsabilidade, eles sempre serão jovens."
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