31.8.09

Lar

Há livros que me chegam às mãos por acaso. Ou secalhar não. Talvez as minhas mãos tenham um íman que atraia precisamente o que procuram quando percorrem as estantes das livrarias. Assim foi com este livro, um dos mais profundos e emotivos que li recentemente.


E assim que me sentei, começou-me a despir.
- Eu dispo-me.
- Doutorzinho rabugento.
E sem me dar atenção, continuou a despir-me. Querida. Era uma moça ainda nova e ela retirava-me peça a peça a minha idade adulta até ficar a criança que ela queria. Eu tomo o banho! berrei-lhe para ela acreditar na minha força de homem. E ela disse ora não querem lá ver este menino birrento. Estou nu e sem razão para ter vergonha de estar nu, que era o que apenas me podia agora vestir. E tinha o coto da perna a atestar isso, porque o meu corpo não estava inteiro para atestar a importância de si. Então a Antónia manobrou uma manivela e a cadeira subiu mais alto que a banheira e depois manobrou ao contrário para a cadeira mergulhar comigo na água. E imediatamente começou a lavar-me. Tão desprotegido, Mónica. Tão desapossado do meu ser. Lavava-me a cabeça, o tronco, lavava-me as partes amorosamente. E eu pensei - depois vai pôr-me cueiros lavados. Então a minha mãe entrou devagar porta adentro e começou a lavar-me com carinho e eu estava sentado na velha selha de zinco, o pescoço, as orelhas, o sexo ainda por existir e eu tinha os olhos fechados e a António voltou a lavar-me ela e eu tinha uma vontade lenta de chorar. Antónia manipulava-me todo e havia ainda uma presença de mim para mim próprio e sentia que ela me tinha desapropriado do meu corpo.

Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra"

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