
LXVIII
A menina de madeira não veio por seu pé:
apareceu ali de repente sentada nos ladrilhos,
velhas flores do mar cobriam-lhe a cabeça,
o seu olhar tinha a tristeza das raízes.
Ali ficou a olhar as nossas vidas abertas,
o ir e ser e andar e voltar pela terra,
o dia desbotando as suas pétalas graduais.
Velava, sem nos ver, a menina de madeira.
A menina, coroada pelas antigas ondas,
estava ali com seus olhos desfeitos:
sabia que vivemos numa rede distante
de tempo e água e ondas, sons e chuva,
sem saber se existimos ou somos o seu sonho.
Esta é a história da menina de madeira.
XCIV
Se eu morrer, sobrevive-me com tanta força pura
que despertes a fúria do pálido e do frio,
de norte a sul levanta os olhos indeléveis,
que a tua boca de guitarra soe de nascente a poente.
Não quero que vacilem nem teu riso nem teus passos,
não quero que morra a minha herança de alegria,
não chames o meu peito, estou ausente.
Habita a minha ausência como uma casa.
É uma casa tão vasta a ausência
que nela passarás através das paredes
e suspenderás os quadros no ar.
É uma casa tão transparente a ausência
que eu, sem vida, te verei viver
e, se sofreres, meu amor, morrerei outra vez.
Pablo Neruda, in "Cem Sonetos de Amor"
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