25.2.10

Aniversário

Fotografia: Newton Bruno

24 de Fevereiro de 1923. Nesse dia de felicidade profunda para os meus pais, estava longe de imaginar que o meu destino seria este. Hoje faço 87 anos e aqui estou, nesta cama velha num quarto frio de uma casa vazia. Ninguém me vai telefonar nem fazer uma visita, não receberei flores nem me cantarão os parabéns em frente de um bolo colorido com velas a arder. Será um dia igual aos outros, apenas mais um, a juntar a todos os outros desta já minha longa existência. Tão longa que às vezes me interrogo para quê.
Gostava de poder beijar o meu filho, se ele se lembrasse do dia de hoje… se ele se lembrasse de mim… Eu bem sei que a vida é acelerada, muito mais do que quando eu tinha a sua idade, em que estava sempre por casa e podia acompanhar o meu marido, os meus pais e o meu filho com tempo, um tempo que já não há hoje, mas a viagem até aqui não demora assim tanto, podia vir passar um fim-de-semana e até apanhava este ar puro que só no campo se respira… se ao menos lhe pudesse dizer que o amo mesmo quando ele não telefona, nem se lembra do meu aniversário!... que estou e estarei aqui sempre, como quando em pequenino brincava sozinho no jardim e eu o olhava da janela da cozinha sem que se apercebesse, para pensar que já era muito crescido e podia estar sozinho… como ficava vaidoso por eu o deixar sentir independente!... O amor com que eu o olhava é o mesmo amor que lhe tenho agora, mesmo que já não me afague os cabelos compridos, de que tanto gostava. Costumava dizer “mamã, os teus cabelos são feitos de seda”, e passava a mãozinha no meu rosto enquanto encaixava a sua cabecita no meu ombro. Nunca deixei que me cortassem os cabelos na esperança de sentir de novo esse afago. Que me cortem os pulsos, mas o cabelo nunca!
Gostava de lhe dizer que as roseiras precisam de ser podadas, pois este ano já não consigo, os meus braços já não têm a mesma força que o meu amor de mãe. O que tenho mais saudades desta casa é de ver as roseiras brancas em flor, a ladear o caminho até à porta de entrada. Talvez… se eu telefonasse, talvez ele viesse no próximo Sábado. Vou-lhe pedir para trazer os meninos, que não me lembro de os ver, já nem os devo conhecer passados estes anos todos. Podia-lhes contar aquela história que ele adorava quando era da idade deles, aquela, do burrinho que estava cansado de ser burro, ou então cantar-lhes uma das canções que a minha mãe me ensinou.
- Estou, quem fala?
- Filho, sou eu.
- Desculpe, mas deve ser engano. Com licença.
Continuo com o auscultador vazio de palavras colado ao ouvido. Não consigo desligar. Talvez ainda me ouça. Filho, sou eu, a tua mãe.

6 comentários:

guida c disse...

A minha avó fez 93 lúcidos anos e é muito parecida com a tua "velhota", felizmente só na aparência. Na vida dela há filhos, netas e bisnetas presentes. Nos últimos dez anos tem tido todos os dias uma criança à volta dela e é por isso que ainda não lhe apetece morrer, como ela própria diz. Quando nasceu a primeira bisneta, ganhou estatuto de bisa, e bisa ficou para todos nós. A minha bisa é feliz e só na aparência é igual à tua "velhota". E o nó que me ficou na garganta depois de ler as tuas palavras é porque sei que há poucas "velhotas" com a vida da minha bisa.

Mafalda Branco disse...

Querida Guida,
é verdade, infelizmente há poucas velhotas como a tua bisa e como os meus avós. E é por lidar muitas vezes com essa realidade cruel que afecta cada vez mais os nossos "velhotes" que esta imagem me fez lembrar dessas histórias reais, de abandono, maus-tratos e desumanidade. Graças a Deus, ainda há algumas bisas como a tua para nos darem alguma esperança!
Um beijinho especial, para a tua bisa também! :)

Mafalda Branco disse...
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Mafalda Branco disse...
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Unknown disse...

não consegui passar das primeiras linhas... até porque só a imagem em si já me sensibilizou. tenho a minha avó ainda, felizmente, com 88 anos. velhinha é certo, mas vive rodeada de amor e carinho. faz parte do nosso legado cuidar de quem já um dia cuidou de nós. nem há outra forma...

Mafalda Branco disse...

Cara Sonja,
concordo plenamente consigo, é pena que a nossa sociedade esteja tão esquecida de valores tão básicos como esse...As histórias bem reais que vamos conhecendo são totalmente incompreensíveis e imperdoáveis. Ainda bem que há mais uma avó feliz e acarinhada pela família! :) Já por aqui andam algumas neste baú, o que é bom sinal! :)
Beijo grande!