24.2.10

À hora marcada

Fotografia: waysbcn

O quarto de hotel cheirava a mofo, a humidade escorria pelo papel de parede. O ar era pesado e as cortinas estavam marcadas pelo pó que ao longo dos anos se foi acumulando no tecido outrora imaculado. Mariana e Carlos trabalhavam na fábrica dos sapatos e eram ambos humildes, o dinheiro que ganhavam ao fim do mês mal dava para pagar as contas, quanto mais um bom hotel. Deitado sobre os lençóis, o corpo de Mariana repousava, exausto, limpo, perfeito. Carlos olhava-a na penumbra, enquanto cumpria o ritual de fumar um cigarro. Tinha uma mística especial aquele lugar, apesar da aparente vulgaridade. De olhos semicerrados, Mariana gostava de sentir a mão de Carlos deslizar vagarosamente pelo seu ombro, percorrendo de seguida todo o braço até à palma da mão e fazendo novamente o sentido inverso. Tantas vezes se amaram que conheciam de cor o corpo um do outro. O cheiro, o sabor salgado e húmido, o calor, a reacção de cada músculo ao mais leve toque. Os sons, os gemidos, as palavras que sempre sussurravam no silêncio do mesmo olhar. Gostavam de se conhecer, preferiam esse conforto que lhes permitia sempre descobrirem-se ainda mais do que pensavam ser possível à intempestuosidade dos primeiros encontros.
Mariana levantou-se, em silêncio, como sempre fazia. O relógio da Igreja batia as seis horas. Estava na hora. Lentamente, de olhar fechado, dirigiu-se ao cabide e vestiu a combinação branca que trazia todas as segundas-feiras.

3 comentários:

guida c disse...

Quase apetece ser personagem dessa "estória"...

sonja valentina disse...

levou-me longe esta "estória"... de "olhar fechado". amores escondidos, paixões que falam mais alto que a razão...

marina disse...

estou a adorar ana! é como te já te disse o teu blog é uma delícia, mas estes últimos textos são de deleite completo. Leria um livro que começasse assim...sem dúvida!
um beijinho grande