O que faz um fotógrafo de nuvens e de estrelas, neste dia de chuva, de temporal desfeito, quase deitado no chão, fotografias espalhadas em volta, no meio da lama? Há quem se aproxime para o ajudar, quem apanhe as imagens mais sujas e lhas devolva limpando-as com a ponta do casaco. Mas, uma a uma, ele volta a colocá-las onde estavam, tão meticulosamente como se as dispusesse num desses tabuleiros que usa para a revelação dos negativos. E, esfregando-as contra as pedras da rua, desenha mais sulcos no papel fotográfico - riscos, manchas negras. «As belas fotografias», digo-lhe, desolada, enquanto procuro salvar ainda as menos atingidas. «Manchadas, estragadas. Porquê tudo isto? Eram tão leves as tuas nuvens, foram tão demoradas de fotografar na exacta medida de luz e de sombra». Molhado até aos ossos, o fotógrafo celeste parece estranhamente feliz com a sua obra. «Agora estão certas», diz. «Continuam tão belas quanto eram, mas têm também aquela margem de lixo e de desordem sem a qual nada pode ser verdadeiramente deste mundo».
Rosa Maria Martelo, in "A Porta de Duchamp"
2 comentários:
que texto delicioso cheio de leituras possíveis nas entrelinhas das palavrase das fotografias... perfeitamente imperfeitas, como tudo na vida deve ser!
gostei!
Pensei em ti quando li este texto! :) Já sabia que ias gostar! Bjinhos!
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