26.3.10

Lama

O que faz um fotógrafo de nuvens e de estrelas, neste dia de chuva, de temporal desfeito, quase deitado no chão, fotografias espalhadas em volta, no meio da lama? Há quem se aproxime para o ajudar, quem apanhe as imagens mais sujas e lhas devolva limpando-as com a ponta do casaco. Mas, uma a uma, ele volta a colocá-las onde estavam, tão meticulosamente como se as dispusesse num desses tabuleiros que usa para a revelação dos negativos. E, esfregando-as contra as pedras da rua, desenha mais sulcos no papel fotográfico - riscos, manchas negras. «As belas fotografias», digo-lhe, desolada, enquanto procuro salvar ainda as menos atingidas. «Manchadas, estragadas. Porquê tudo isto? Eram tão leves as tuas nuvens, foram tão demoradas de fotografar na exacta medida de luz e de sombra». Molhado até aos ossos, o fotógrafo celeste parece estranhamente feliz com a sua obra. «Agora estão certas», diz. «Continuam tão belas quanto eram, mas têm também aquela margem de lixo e de desordem sem a qual nada pode ser verdadeiramente deste mundo».

Rosa Maria Martelo, in "A Porta de Duchamp"

2 comentários:

Unknown disse...

que texto delicioso cheio de leituras possíveis nas entrelinhas das palavrase das fotografias... perfeitamente imperfeitas, como tudo na vida deve ser!
gostei!

Mafalda Branco disse...

Pensei em ti quando li este texto! :) Já sabia que ias gostar! Bjinhos!