2.3.10

Não sei dizer

Fotografia: Sonja Valentina

Miguel caminhava de um lado para o outro na sala, inquieto. Sentia-se vazio, as palavras fugiam-lhe, as ideias tropeçavam umas nas outras, a ansiedade tomava-lhe o peito e dificultava-lhe a respiração. Na secretária envelhecida que herdara do avô, aguardava-o a também velhinha máquina de escrever que comprara numa das inúmeras viagens a Paris e que era, mais do que um objecto, uma companheira de vida e das noites sem sono. Miguel tinha já escrito milhares de páginas naquela máquina. Havia algo nela que o inspirava. Nunca conseguia escrever no computador, havia uma espécie de barreira que o inibia, mas mal tocava nas velhas teclas as palavras nasciam em catadupa. Escrevera nela cada um dos seus livros e era com ela que partilhava a angústia do sucesso. Para todos os outros, o sucesso de vendas era motivo de felicidade, para ele era de angústia. Não conseguia compreender como é que alguém podia gostar ou admirar o que escrevia. Pensava muitas vezes se das pessoas que o liam alguém verdadeiramente o compreendia ou entendia o que estava por detrás das palavras gravadas no papel. Ele era muito mais do que as palavras que escrevia. Era tudo e nada daquilo ao mesmo tempo. Mas escrevia sempre como se a morte o aguardasse na próxima esquina da vida. Passava horas e horas intermináveis sentado àquela secretária. Esquecia-se muitas vezes de comer, de dormir, de fazer a barba, de viver. Escrevia como se as palavras fossem a própria respiração. Agora, diante da velha companheira, pela primeira vez na vida sentia que não sabia o que escrever. Precisava escrever uma carta. Não se lembrava de o ter feito. Aliás, nunca o tinha feito. Não uma carta como esta. Não sabia escrever o que não queria dizer, o que não sentia. Uma única palavra seria o suficiente, era tudo o que ela esperava. Acabou. Porque não conseguia escrever? Os dedos desenhavam sobre as teclas os contornos daquela única palavra. Seria tão fácil escrevê-la!... Uma raiva que não conhecia atirou-o contra a parede. Se não tivesse partido o espelho teria partido a máquina. Acendeu um cigarro. Foi até à janela olhar o rio, sempre presente, confidente das angústias e dos medos, cúmplice das horas infindáveis de silêncio e solidão. Um fio de sangue escorria-lhe pela mão e cravava-se na madeira do parapeito onde se apoiava. Não sabia nem podia dizer o que não queria. A folha continuava em branco. Nunca conseguiria escrever aquela carta.

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