24.1.09

Revolvi o meu baú e...


Hoje voltei a casa dos meus pais determinada a remexer o meu baú. Às vezes preciso de rever aquilo que fui guardando ao longo dos anos e que foi contribuindo para a construção da minha personalidade, é talvez uma forma de me reencontrar comigo mesma. E hoje, depois de abrir gavetas, escrivaninha, armários, caixas, malas, encontrei uma revista especial que não via há anos! A revista "Escola & Companhia" (da minha escola secundária), de cuja redacção fiz parte. E este número tinha várias coisas igualmente especiais: a capa, feita por mim, sobre racismo, o espaço "Bloco de Notas", que eu assinava e onde criticava o que estava mal na escola (já na altura ia sendo linchada! :)), e um conto de Natal... Sentei-me no chão do meu quarto e voltei a ler... já não me lembrava sequer que o tinha escrito, mas como acho que nada acontece por acaso, talvez este "encontro" me queira dizer alguma coisa. Fala de um sonho e da sua concretização. Eu e os sonhos, os sonhos e eu... foi bom perceber que 10 anos depois continuo a mesma sonhadora. Daqui a 10 anos desejo continuar assim...
Já não estamos na época do Natal, mas o espírito natalício pode envolver-nos a qualquer momento, por isso resolvo partilhar este conto, porque também ele faz parte do meu baú de recordações...

"Neve milagrosa?"

Esta história poderia começar por "Era uma vez há muitos anos atrás...", mas não é assim que quero que ela comece. Esta história não faz parte do passado, repete-se no dia-a-dia e na vida de muitos jovens e é por isso que a conto. Ao escrever este conto, não pretendia apenas escrever mais um banal conto de Natal, sobre uma criança sem casa ou acerca de um velhinho sem família (não que estes não sejam problemas importantes!); pretendia que fosse um alerta para um dos problemas que cada vez mais afecta negativamente a vida de muitos jovem: a autodestruição dos seus pais. Não vale a pena dizer o ano nem o local onde tudo se passa, porque afinal, esta história é uma manta de retalhos de testemunhos, nela certamente se reflectem muitos dos leitores desta revista. Mas será que o Natal é só uma desilusão ou haverá algo que o possa tornar num sonho?...

Neva. As horas passam, mas ninguém repara. É a primeira vez que aqui neva... As crianças divertem-se atirando bolas de neve umas às outras, os adultos deliciam-se a ver os seus rebentos tão felizes e, contagiados pelo ambiente de euforia, misturam-se nas brincadeiras com os mais pequenos. Quando saem da escola, todos os jovens se juntam àquele espírito de união, de cumplicidade. Nunca tinha nevado aqui...
Alheia a toda aquela algazarra, uma rapariga caminha no passeio. Não se interessa com a neve, apesar de também nunca a ter visto. De repente, pára. Baixa-se e agarra um pouco de neve para a sentir, na esperança de que essa sensação lhe traga alguma surpresa ou admiração. Recorda os livros da escola primária, com aquelas imagens de montanhas cobertas de bolinhas de algodão chamadas neve. Agora sente-a, mexe e remexe sem encontrar nada de atraente. Não, atira-a para o chão, enfia as mãos nos bolsos e continua o seu caminho. A única coisa que sente diferente é a sua mão, agora enregelada. Afinal, a neve não é nada de especial, foi só mais uma desilusão. O seu nome é Rita... a sua vida é como as folhas no Outono: vai para onde o vento a quiser levar.
Quando Rita chega a casa não encontra ninguém. Chama, mas ninguém responde. Respira de alívio, adora estar sozinha e prefere enfrentar o medo da solidão do que o medo do cinto do pai. A noite passa calmamente, a neve cai lá fora e Rita, embalada pelo suave assobio do vento, adormece lentamente. De repente, sente fome, levanta-se e dirige-se à cozinha. Procura em todo o lado, mas nada há para comer. A mãe não deixou sequer um pão para a sua última refeição. Mas ela já está habituada e volta a deitar-se no seu leito. Tenta dormir, mas desta vez é-lhe difícil. Sente-se atormentada pela fome, pelo medo e pela solidão. Não quer sonhar, mas é inevitável. Começa a imaginar-se numa bonita e simples casa, os pais chamam-na para o jantar e or irmãos correm à volta da mesa. O jantar é frango assado no forno... O doce perfume entra-lhe pelas narinas e deixa-lhe água na boca. Continua a sonhar. Mas, num ápice, acorda. Agora a fome aperta mais e a tristeza também, não quer chorar porque é corajosa, mas sem queres, as lágrimas começam a escorrer-lhe pela face e os gritos de desespero saem-lhe da boca como a neve cai do céu. Rita é assim: uma face de esperança, outra de desespero.
O sol brilha no seu mais alto esplendor, está muito frio, mas isso que importa? Quando Rita entra atrasada na aula faz-se silêncio. Alguns colegas murmuram: "Mais uma surra e menos uma pipa de vinho na tasca do ti Inácio! Ah! Ah! Ah!". A professora aproxima-se preocupada, mas logo se afasta quando recorda as palavras da aluna: "Não preciso de ajuda, o problema é entre mim e os meus pais, deixe-me em paz!". Rita porta-se normalmente, como se nada tivesse acontecido. Por vezes torna-se irritante o seu comportamento de apatia perante os abusos do pai e a indiferença da mãe, mas ninguém tem coragem para interferir, ela própria nunca deixaria!
As férias começaram. Todos estão felizes, correm para casa e depois para o habitual encontro no café, onde combinam o destino das férias de Natal, ou simplesmente disputam os pedidos das melhoras prendas. Rita corre para casa porque sabe que hoje o pai chega mais cedo. Quer chegar primeiro que ele, mas não consegue. Quando entra em casa, já o pai a espera de cinto na mão. Grita-lhe, exige saber a razão da sua demora. insulta-a e bate-lhe. O silêncio do pequeno casebre é cortado pelo ruído das chicotadas. Rita não se atreve a gemer ou a gritar, sabe que isso vai agravar o seu castigo, já está habituada. À noite o cenário repete-se, desta vez com a mãe. Rita encolhe-se debaixo do lençol, tapa os ouvidos com as duas mãos e chora baixinho. Quer ajudar a mãe, bater no pai, mas não tem coragem, isso agravar-lhe-ia o castigo, já está habituada.
O dia eleva-se devagarinho, a chuva cai e a neve derrete, transformando-se em lama. As montras das lojas da cidade contrastem com este cenário: estão repletas de anjinhos, pais natais e pinheirinhos enfeitados com mil cores, com mil luzinhas de ouro que cintilam por entre embrulhos e docinhos, roupas e brinquedos, computadores e bicicletas. Rita olha maravilhada para uma montra, parece que nada mais no mundo lhe interessa. Uma velhinha que vai a passar, pára e pergunta-lhe curiosa: "Porque olhas tão fixamente para essa montra, minha menina? Só há aí brinquedos para crianças e tu já és quase uma senhorinha!". Mas Rita não olha para a montra, nem para os brinquedos, olha para o seu sonho, para a sua infância e inocência perdidas e chora, chora, chora... Corre para casa impelida por um instinto, não sabe nem sonha o que a espera...
No pequeno casebre, o silêncio impera. Rita abre a porta e dá um grito. A sua mãe jaz no chão da cozinha, um fio de sangue escorre-lhe da boca, tem a roupa rasgada e o corpo cheio de nódoas negras. Tão assustada está que não sabe o que há-de fazer. Corre para o café perto da rua onde mora e pede para chamarem uma ambulância. De nada lhe vale este pedido tão angustiado, a sua mãe já não tem pulso e os médicos nada podem fazer. Preocupados com a adolescente, tentam saber o que tem acontecido naquele pobre casebre. Rita não mexe, não fala, não chora... ouve com raiva os ruídos do cinto do pai atormentarem as costas da mãe... Essa lembrança não lhe sai da cabeça e, revoltada com o mundo tão cruel que a tem criado, grita de desespero, agarra-se aos médicos e implora-lhes que tragam de volta a sua mãe, ordena-lhes que o façam e diz-lhes entre soluços que tudo será diferente se a mãe voltar. Quando a polícia chega ao local, Rita denuncia o pai e todas as suas crueldades. Pede-lhes que o prendam porque, se tal não acontecer, ela será massacrada por ter confessado o que se passou durante dezasseis anos entre aquelas frágeis paredes. Agora já nada lhe resta, nem as recordações... Recordações?! De quê? De quem?...
É meia-noite da véspera de Natal. Batem à porta da casa onde Rita agora mora, longe de todo o pesadelo que viveu. Passados cinco anos depois de tudo, a sua vida mudou. Não se lembra da sua mãe, não quer saber do seu pai. Mora com os seus verdadeiros pais, aqueles que a curaram das suas feridas, aqueles que a abraçam quando ainda parece ouvir o cinto do pai e os gritos da mãe, aqueles que todos os dias lhe dão pão quentinho pela manhã, aqueles que a amam, que a ajudam e protegem. Alguém mandou entregar um embrulho para a menina Rita. É uma caixa linda, dourada pela luz da fita que a envolve. Rita corre para o pé dos pais, junto da árvore de Natal. Senta-se no chão e, antes de abrir o embrulho, olha à sua volta. Tudo de bom a rodeia: comida na mesa, presentes debaixo da árvore de natal, uma lareira enorme que aquece e dá vida à casa, a roupa que a reveste é de uma lã tão quentinha que quase a deixa asfixiada e, o mais importante, duas pessoas curiosas que lhe gritam aos ouvidos: "Abre, não estás curiosa?!". Todo este ambiente contrasta com o ambiente que a rodeava há cinco anos atrás... Tão pouco tempo passou e tanta coisa mudou... No entanto, atraída pelo apelo curioso dos pais, abre a caixa-mistério: "Oh!!...". Todos ficam maravilhados. Apesar do sorriso de felicidade, as lágrimas brotam dos seus olhos, correndo em cascata pelo seu doce rosto. Rita enfia as mãos na caixa e ergue triunfante o seu sonho, a sua infância perdida, mas agora recuperada: a mais bonita boneca de porcelana que já tinho visto na sua vida. De repente, recorda-se daquela montra impressionante de há cinco anos atrás, recorda-se do rosto daquela velhinha e relembra o seu sorriso tão misterioso... terá sido ela a remetente deste maravilhoso presente? Seria ela a detentora do destino de Rita? Não se sabe, ninguém nunca o saberá... Mas havia qualquer coisa naquela misteriosa figura que faz Rita pensar. Algo interrompe os seus pensamentos. Batem à porta com força e, juntamente com os seus pais, corre para a rua. Neva... É a coisa mais maravilhosa que alguma vez aqui tinha sido vista. Rita ajoelha-se e apanha um pouco de neve. Olha para o céu e sorri: uma estrela cintilando cai devagarinho, como que desenhando também uma resposta àquele sorriso... Continua a nevar milagrosamente. Nunca tinha nevado aqui...

Anya Silke (o meu pseudónimo da altura! :)))

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