7.3.10

Liberdade

Fotografia: Getty Images

A chave rodou na fechadura. Na rua, escura e deserta, apenas aquele ruído do metal velho e enferrujado fez estremecer o silêncio. Um dos gatos vizinhos passou-lhe rente às pernas, assustado com a inesperada alteração da calma que vestia a noite. Margarida continuava parada em frente à porta que fechava para sempre. Uma chuva miudinha molhava-lhe o cabelo e o rosto e colava-se ao casaco de malha branco que usava sempre nas noites frias do Inverno que parecia não ter fim. Não havia lágrimas no seu olhar, apenas um vazio a que se habituara e com o qual travara uma batalha inglória, ele instalara-se definitivamente sem que ela se conseguisse salvar. Das mãos pendia uma velha mala de cartão, daquelas que já ninguém usa agora. Lá dentro apenas a Bíblia que recebera das mãos de sua mãe e as caixinhas de música que coleccionava desde menina e que gostava de pôr a tocar quando tudo já dormia.
Rodou novamente a chave. Duas voltas e estava trancada para sempre. Margarida sabia que não voltaria ali. Por trás daquela porta pesada ficavam memórias que queria apagar. Virou-se e olhou pela última vez aquela rua. Nas janelas havia luzes que se habituou a conhecer. Gostava de imaginar histórias para cada uma daquelas janelas, de acordo com as personagens que apenas conhecia do dia-a-dia de uma rua como tantas outras. Sabia que por detrás daquelas luzes havia muitas histórias tristes, de solidão, de sofrimento, de violência, de doença até. Mas Margarida imaginava para cada uma daquelas pessoas as histórias mais bonitas e mais mágicas que a sua imaginação conseguia arquitectar. Isso dava-lhe um certo conforto, para conseguir voltar a ter esperança no ser humano e num mundo melhor, e era assim muitas noites, com o som encantado das caixinhas de música e com as histórias que inventava para si mesma, que Margarida conseguia adormecer e voltar a sonhar.
Atrás de si, a porta guardava todo o peso que durante tanto tempo a atormentou. Margarida sorriu e caminhou à chuva enquanto olhava as luzes nas janelas. Sentia-se livre. Pela primeira vez em tantos anos, sentia-se livre.

2 comentários:

Ana disse...

Lindo...Belíssimo!

Obrigada!! Do fundo do coração...Obrigada! ...Comovida...

Mafalda Branco disse...

Obrigada eu, por tudo, amiga! Ir a Fátima contigo foi muito especial! Obrigada...