8.3.10

Ritual


Os vizinhos viam-na passar, abanavam a cabeça e pensavam “lá vai aquela maluca”. Há muito que tinham deixado de a tentar demover daquela ridícula ideia. “Onde já se viu, ir todos os dias ao cemitério, faça chuva ou faça sol? Estava tão bem em casa, ao borralho. Aquela mulher ainda apanha uma pneumonia com esta maluquice e vai fazer companhia ao marido mais depressa do que pensa.” Júlia sabia bem o que os vizinhos pensavam, olhava-os pelo canto do olho sem que eles se apercebessem e via as expressões de repúdio e de gozo. Aprendeu a não se intimidar com elas. O que sabiam eles da dor de perder o único homem que conhecera toda a vida, o seu companheiro, o seu amigo, o seu homem? Foram 60 anos de vida em comum! Manuel nem sempre tinha sido um bom marido, é certo. Nos primeiros anos de casamento chegava muitas vezes a casa com um pinguito a mais e não se controlava. Ela nunca o tinha deixado bater nos filhos. Preferia ser ela a receptora daquela raiva incontida, apesar de não a compreender. Júlia era uma mulher que aceitava, que se resignava. Não foi ensinada a pensar ou a questionar. Se o marido era assim, era assim que ela o aceitaria.
Com o passar dos anos, no entanto, Manuel mudara. Passou a ficar mais tempo em casa, deitava-se cedo e o álcool deixou de ser companhia frequente. A vida melhorou. Era até, às vezes, um pouco carinhoso com ela. Aos 75 anos, um cancro deixara-o preso a uma cama. Foram 6 árduos anos para Júlia. Com os filhos no estrangeiro, teve que cuidar ela própria do marido, sozinha. Fê-lo com desvelo e com amor, o melhor que sabia e as suas forças deixavam. Sabia que a morte o esperava brevemente, mas habituara-se a tê-lo ali, sempre ao seu lado. Passavam todo o dia e toda a noite naquele quarto. Viam televisão, falavam quando ele estava mais bem-disposto, ela lia-lhe as notícias do jornal da terra como conseguia, quase a soletrar, pois era a única forma de saberem ambos como iam as coisas fora daquelas paredes.
Mas o dia chegou. Júlia vestiu-o com o melhor fato que tinha, com os sapatos que só usara uma vez no casamento da filha mais nova e colocou-lhe entre os dedos um terço azul que tinha pedido à filha para comprar em Fátima e que tinha guardado para aquela ocasião. Antes de fecharem o caixão, pediu um momento. Aproximou-se, deu-lhe um beijo e fez-lhe uma festa com ternura na face. Quando voltou para casa, deitou-se na cama e chorou toda a noite. Aprendeu a chorar apenas à noite, quando ninguém a ouvia ou fazia comentários despropositados sobre uma dor que não compreendiam que existisse. De dia, permanecia firme, como se tudo fosse natural e nada a magoasse. Apenas a ida diária ao cemitério a desmascarava. Em 5 anos de luto, não havia um único dia que não tivesse ido ao cemitério. Gostava de ir ver se estava tudo bem, se as flores estavam viçosas, se a vela estava acesa. Naqueles dias de Inverno rigoroso ficava mais angustiada. Lembrava-se de um dia em que a neve era tão alta que tapava o portão do cemitério e que quase a fez desistir, mas com as suas mãozitas obstinadas e com a ajuda da bengala conseguiu afastar o suficiente para avançar. Tirando esses sustos, não se importava com a neve, sabia que naqueles dias seria a única que por ali vagueava e isso dava-lhe um estranho prazer. Gostava de estar sozinha naquele espaço. Ao chegar e ao regressar, cumpria sempre o ritual de beijar a fotografia do homem que aprendera a amar e de quem tinha agora tantas saudades. Esperava pacientemente pelo dia em que se juntaria a ele. Dentro de si, sentia que esse dia estava próximo.

1 comentário:

Astrid disse...

Lindo, Mafaldinha. Parabéns pelo nosso dia e por todas as nossas lutas e conquistas. ;)

Beijos, flores e estrelas ****